Há poucos dias, David Lynch deixou este plano de existência. Artista completo, empenhou-se em traduzir para as telas os recantos mais obscuros de nossos pesadelos, escondidos sob o cândido véu do sonho americano e de vizinhanças tranquilas com cercas brancas.
Em meio à inevitável revisitação de sua obra, me vi pensando se e como é possível para o RPG capturar o surrealismo tão presente na obra de Lynch.
Inicialmente, podemos conceituar surrealismo como o revolucionário movimento cultural e artístico que almeja a livre expressão do inconsciente, superando a contradição entre sonho e realidade para reuni-los em uma "suprarrealidade" (daí o nome) e valendo-se especialmente de combinações de elementos de uma forma estranha e inesperada (tal qual em sonhos).
Aplicar temas próprios do surrealismo não é uma ideia inédita para jogos de interpretação: o mais célebre deles é Over the Edge, o autointitulado RPG de perigo surreal, que se passa na nação insular de Al Amarja, centro de todas as conspirações globais. As duas primeiras edições traziam com um sistema consagrado por sua simplicidade; a 3ª edição veio com um novo conjunto de regras, tão inspirado quanto o anterior.
Ainda que o RPG tenha como alguns de seus temas principais a fantasia e o horror, uma perspectiva "gamista" talvez seja o maior obstáculo para jogos surrealistas.
De fato, os jogadores costumam demandar um grau considerável de previsibilidade para que possam considerar justa uma aventura. Disso decorre que feitiços, criaturas fantásticas e fenômenos mágicos em geral estão exaustivamente descritos nos livros de regras. Todos iniciam uma crônica no Mundo das Trevas sabendo como operam vampiros, lobisomens e outros seres; o mesmo se diga em D&D, ou até mesmo em Call of Cthulhu, em que cada magia tem seus efeitos explicados e cada monstro vem com suas estatísticas.
Imprevisibilidade deve ser a palavra de ordem, não só no que diz respeito a fenômenos sobrenaturais, mas também quanto a outros elementos do cenário.
Nem tudo poderá ser explicado, da mesma forma que Lynch nunca se preocupou em explicar algo. O ponto de partida da história é bastante claro, mas não necessariamente o final. À medida que a realidade, aparentemente nítida e concreta, se esfacela diante dos olhos dos personagens, suas percepções tornam-se mais e mais subjetivas. NPCs, props e eventos podem não apresentar qualquer conexão com a trama. Esqueça a Arma de Chekhov, princípio tão utilizado por narradores, sobretudo em one-shots.
Quanto ao sistema, qualquer um pode ser utilizado, apesar de que regras minimalistas propiciarão melhor a liberdade necessária para o gênero.
Claro que conduzir uma campanha verdadeiramente surreal exige um grande esforço, tanto do narrador (maior que o habitual) quanto dos jogadores. É essencial que antes da primeira aventura os jogadores tenham uma conversa franca sobre conteúdos sensíveis. Para aqueles que não tiverem intimidade com o gênero, a recomendação óbvia é conhecer o trabalho de Lynch -- em especial Twin Peaks. E que seus cafés estejam sempre quentes e muito bons.